“Visitante, seja bem-vindo, sua presença é um prazer. Nós estamos, com alegria, o Jalapão ama você”.
É assim que o músico Arnon Ribeiro recebe quem chega à comunidade Mumbuca, em Mateiros. Com a viola de buriti em mãos, ele dá continuidade à história do cunhado Maurício Ribeiro, morto em 2021, aos 46 anos, vítima de complicações da Covid-19. A música, o artesanato com capim dourado e a culinária da terra são traços da cultura deixados pelos antepassados quilombolas dessa região que fica no coração do Jalapão.
A viola de buriti é um instrumento musical que foi criado na década de 1940 pelo avô de Maurício. Fabricado com a palmeira do buriti (uma árvore) e linhas de pesca, a viola é totalmente feita de forma artesanal, um patrimônio artístico da região. “Essa viola não é só um trabalho, aqui vai tudo. Vai o trabalho, vai a arte”, finaliza Arnon.
Além da música, as tradições da comunidade podem ser vistas em cada pedacinho da Festa da Colheita, momento em que os artesãos que moram no quilombo celebram o brilho do capim dourado. A temporada de colheita começa em setembro e segue até o início das chuvas.
O evento é realizado pela Associação de Artesãos e Extrativistas do Povoado Mumbuca em parceria com o Sebrae, a Energisa e o Governo do Tocantins. O objetivo é fomentar a renda de toda comunidade, que vive da venda para os turistas. Com o trabalho manual fio a fio, os artesãos confeccionam joias, objetos de decoração e bolsas, comercializados na festa e durante todo o ano.
“Vocês que estão aqui, prestem muita atenção, pois aqui no povoado costurar capim dourado é a nossa tradição. Mas eu vou colher o capim, para mim costurar, tradição da minha vó, aprendi neste lugar e não posso mais deixar”, canta a artesã Thayane Gomes Ribeiro, de 27 anos, enquanto continua trançando o capim que vai se transformar em uma mandala. Ela faz parte da geração de mulheres do Mumbuca, como dona Laurentina e dona Miúda, que foram líderes responsáveis pelo fortalecimento do quilombo.
A cultura e a economia criativa e sustentável são formas de expressar a luta desse povo pela existência e representatividade do quilombo.
Peças de capim dourado vendidas na comunidade quilombola Mumbuca – Foto: Vilma Nascimento/g1
“O capim dourado para nós é vida. Ele transformou a vida do nosso povo do Mumbuca e do Tocantins. Ganhou o mundo com dona Miúda e, hoje, representa a arte e guarda essa tradição deixada pelos nossos antepassados, guardada com muito carinho, que agora representa também a nossa sobrevivência. É o coração da nossa economia, coração da nossa cultura”, ressaltou a diretora-executiva da associação, Railane Ribeiro.
A coleta das hastes do capim dourado é fiscalizada pelo Instituto Natureza do Tocantins. O período é regulamentado pela Lei n° 3.594 de 2019, que institui a Política Estadual de Uso Sustentável do Capim Dourado e do Buriti.
“Mesmo que alguns moradores tenham outra renda, não deixam de costurar. É o forte que sabemos desde criança. A colheita é um momento de gratidão a Deus pela oportunidade de ter o capim dourado e poder apresentar uma história de muito sofrimento, mas cheia de conquistas para o mundo”, resume a artesã Thayane Gomes.
Qualificação e valorização
Para seguir viva e crescer, a tradição do povo jalapoeiro conta com apoio de instituições como o Sebrae a Energisa. As empresas auxiliam na montagem da estrutura do evento e na qualificação profissional.
“É um projeto que começou há três anos em parceria com o Sebrae, o Energia Para Crescer. O foco desse projeto é desenvolver as comunidades levando empreendedorismo e resgate cultural”, disse o diretor de relações institucionais da Energisa, Allan Kardec.
Na festa foi lançada ainda a Rota Gastronômica Sabores do Jalapão. Mais de 30 pratos de restaurantes da região estão no projeto. O objetivo é qualificar os profissionais do ramo, para que a comida local seja mais valorizada.
“O Sebrae tem contribuído para que os artesãos e comerciantes do Mumbuca divulguem seus produtos e temos muita gratidão por ver que nosso trabalho está contribuindo com a comunidade. A gente desenvolve um senso de pertencimento e começa a fazer parte da vida dessas pessoas”, explica a analista técnica do Sebrae, Admary Monteiro.
Dentro do projeto, o Sebrae ajuda os chefes e cozinheiros a elaborar apresentações, sugerem diferentes combinações e a divulgar os pratos. A chefe Sara Batista de Almeida, de 32 anos, tem um prato que faz parte da rota. O restaurante dela fica dentro da área da comunidade quilombola do Mumbuca, do lado da Prainha e de um fervedouro.
“Eu comecei a buscar o Sebrae, conversei com a Admary e pedi pra ela: ‘eu preciso melhorar minha apresentação, eu sei cozinhar, mas às vezes eu não sei apresentar’. Então eu me uni com o Sebrae e eles estão há quase dois anos me dando suporte de apresentação.”
A parceria elevou a confiança da Sara e hoje ela cria vários pratos e faz a alegria dos clientes no Jalapão.
‘Eu crio pratos. Por exemplo: carne de sol com creme de mandioca foi um prato que acabei de criar. Criei mousse de mangaba. Apresentei para os meus clientes durante três meses o churrasco de chambari, foi um prato que a gente criou com pirão de chambari. Então eu venho me realizando e cada vez mais me encontrando dentro da culinária.”
Os olhos dela brilham quando fala do lugar onde nasceu e não quer sair nunca.
“Até meus 25 anos, meu desejo era sair do Jalapão, porque eu não reconhecia o que era o Jalapão, o que o Jalapão significava. Por causa das chacotas, inferioridade, de olhar pra nossa cidade e pensar assim: ‘nós não podemos chegar lá’. Depois eu comecei a ver valores no Jalapão que eu nunca tinha observado, porque pessoas criavam isso na nossa mente. Hoje o Jalapão é muito conhecido porque tem um povo, porque nós estamos aqui. Quem fez o Jalapão fomos nós, foi a minha família, foram meus avós. Não tem porque eu não querer mostrar isso pro mundo”, finalizou Sara.
Apesar do nome, o capim dourado não é um capim, pois não pertence à família das gramíneas. A haste dourada com uma pequena flor branca no topo é, na verdade, da família das sempre-vivas. Considerado uma das preciosidades do Tocantins, o capim-dourado brota em outros estados do Brasil, onde há incidência do bioma Cerrado: Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás, Distrito Federal e Bahia.
A planta é a principal matéria-prima para a confecção de bolsas, bijuterias e objetos de decoração feitos por artesãos, principalmente os quilombolas que residem na Área de Proteção Ambiental do Jalapão. Foram os artesãos do povoado Mumbuca que tornaram a produção de peças em capim dourado famosas pela beleza e conhecidas em todo o Brasil e no exterior.
Dona Miúda é a artesã que revolucionou a produção do artesanato na região do Jalapão. Defendeu a produção sustentável do artesanato em capim dourado. Criou a associação dos Artesãos do Mumbuca, região em que viveu. Dona Miúda morreu em 2010. É reconhecida hoje como grande fomentadora e divulgadora da costura do capim dourado.